segunda-feira, outubro 10, 2005

Será desta the L Word na 2

Muitas vezes, em televisão, a homossexualidade suscita uma involuntária ironia a de pensar (e fazer pensar) que há uma "dificuldade" inerente a qualquer ficção que a represente. Ou seja: aparece sempre um coro de vozes inquietas a perguntar se tal representação é "correcta" ou não. Ao mesmo tempo, essas vozes são incapazes de levantar a mais pequena dúvida metódica sobre os modos de encenação da… heterossexualidade.

A televisão que esbarra na "estranheza" da homossexualidade é exactamente a mesma que alimenta a ilusão de que há qualquer coisa de "natural" nas representações correntes das relações heterossexuais (incluindo as das telenovelas, frequentemente marcadas por um profundo determinismo afectivo, para não falar do seu violento moralismo "social"). Daí as barreiras dentro das quais, quase sempre, a televisão gosta de se situar a anedota e o direito à diferença.

A anedota, entenda-se, não é o mesmo que a arte nobre da caricatura (para citar apenas um exemplo, recordo as espantosas composições de Nathan Lane e Robin Williams nessa comédia deliciosa que é A Gaiola das Malucas); a anedota, pelo contrário, reduz qualquer personagem a mera expressão de um estereótipo sem alternativa (o "homossexual", o "negro", o "intelectual", etc.). Quanto ao essencial direito à diferença, muitas vezes passou a ser tratado como uma grosseira forma de militância aquele que é "diferente" já não existe por si, uma vez que passou a ser obrigatória bandeira de uma "causa".



A crítica metódica de tudo isto está numa das melhores séries americanas disponíveis nos canais do cabo chama-se The L Word e passa no Fox Life. A palavra L do título é uma brincadeira de contrastes (veja-se o site oficial www.thelwordonline.com). Pode ser "love", "look", "liberty" e, claro, "lésbica": The L Word cruza ficções de um grupo de amigas lésbicas de Los Angeles.

É curioso que The L Word recorra a algumas actrizes que, independentemente do seu talento, nunca adquiriram um estatuto seguro na galáxia de Hollywood. Por exemplo, entre as protagonistas Jennifer Beals (vedeta do já remoto Flashdance, de 1983) e Pam Grier (símbolo erótico dos anos 70, relançada em 1997, por Quentin Tarantino, em Jackie Brown). Ou ainda, entre as actrizes convidadas Anne Archer, Rosanna Arquette, Lolita Davidovich e Kelly Lynch.

Todas elas servem exemplarmente a lógica da série recusar criar "heroínas" e dar a ver como a orientação sexual, sendo um modo de inserção no colectivo (familiar, profissional, social), começa por ser um factor íntimo de conhecimento e definição. Daí a luminosa psicologia: tudo passa pela sexualidade, mas a sexualidade não basta para definir tudo. Ou ainda: não veremos The L Word, um dia destes, no horário nobre de um canal generalista. Demasiado humano para lá caber.

João Lopes

in Diario de Noticias 09.10.05